Relações entre a desindustrialização brasileira e a indústria criativa
Filipe da Silva, Gustavo Möller e Leandro Valiati analisam a desindustrialização no Brasil e no Mundo em relação com um modelo econômico baseado no conhecimento
Publicado em 23/06/2023
Atualizado às 15:24 de 16/10/2023
por Filipe da Silva, Gustavo Möller e Leandro Valiati
Resumo
O ganho de relevância da indústria criativa nos últimos 30 anos ocorreu em meio a tendências de desindustrialização. Esse processo foi resultante, entre outros fatores, do surgimento de um modelo de produção mais intensivo em conhecimento. Assim, houve uma absorção do emprego industrial pelos setores de serviços e criativos, dando origem a uma polarização do mercado de trabalho. No entanto, observou-se que a polarização brasileira foi distinta daquela dos países desenvolvidos, pois se caracterizou por uma intensidade criativa menor.
Introdução
Nos últimos 20 anos, a indústria brasileira sofreu transformações que acarretaram uma perda de relevância do setor, que passou de representar quase 30% do produto interno bruto (PIB) brasileiro para, no segundo semestre de 2022, representar apenas 19,9%. Entre as razões históricas para o declínio do setor industrial brasileiro apontadas pela literatura, encontramos a abertura comercial feita nos anos 1990, os juros elevados e a grande valorização do real frente ao dólar (CANO, 2012).
Mais recentemente, na década de 2010, a academia especializada começou a trabalhar com outras teses de impacto sobre a indústria brasileira, de carácter mais profundo quando comparadas aos efeitos conjunturais citados anteriormente. Foram publicadas hipóteses de que uma possível “doença holandesa”[1] e uma desindustrialização precoce estariam afetando a indústria nacional. Simultaneamente a esses impactos, começou-se a estudar outros fenômenos que estariam repercutindo na indústria brasileira, como é o caso de uma mudança de paradigma mundial e da polarização do mercado de trabalho.
Durante esse processo de transformação, observou-se uma dinâmica de criação e destruição de postos de trabalho em diversos setores, causando uma mudança estrutural profunda na economia brasileira que afetou particularmente o mercado de trabalho. Como no caso da indústria, os impactos sobre o emprego não foram originados de uma única fonte; destacamos também o papel do progresso tecnológico e das mudanças nos padrões de consumo (RODRIK, 2016; BUCKLEY; MAJUMDAR, 2018). Essas modificações impulsionaram a destruição de empregos industriais em detrimento da criação de empregos nos setores de serviços e criativos.
Desativadas
No entanto, diferentemente do que se observou em países desenvolvidos, no Brasil, a taxa de criação de empregos intensivos em criatividade não foi suficientemente forte para superar a taxa de criação de empregos nos setores de serviços e naqueles de baixa intensidade tecnológica. Pode-se argumentar que esse cenário é uma consequência da incapacidade da economia brasileira de gerar ou manter setores com alta intensidade tecnológica frente a aspectos conjunturais, políticos e estruturais. Também pode-se pensar que, em parte, a falta de investimento em capital humano específico agravou o impacto e contribuiu para que não se aproveitassem janelas de oportunidade trazidas pelas mudanças de paradigmas tecnológicos – por exemplo, a transformação de uma economia de produção em massa para uma baseada em conhecimento e, por conseguinte, em criatividade.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo principal estudar a evolução da dinâmica entre a desindustrialização brasileira e a criação de empregos criativos segundo sua intensidade. O artigo está dividido em seções: na primeira, aborda o debate sobre a desindustrialização brasileira; na segunda, trata da dinâmica da criação do emprego criativo nos últimos anos; e, na terceira, traz as considerações finais.
O declínio da indústria brasileira
Como mencionado, a indústria brasileira passou por períodos não favoráveis nos últimos anos. Isso ocorreu por fatores conjunturais e estruturais, como é o caso das crises econômicas e da “doença holandesa”, respectivamente; ou por mudanças de paradigmas político-econômicos que, por exemplo, deixaram de lado a ideia de um papel mais ativo do Estado, afetando diretamente a construção de uma política industrial no Brasil (BRESSER-PEREIRA; NASSIF; FEIJÓ, 2016). Esses impactos culminaram numa queda significativa na participação da indústria brasileira no PIB nacional. Como pode ser observado no Gráfico 1, a participação da indústria, que chegou aos quase 50% nos anos 1980, atualmente representa pouco menos de 20% do PIB brasileiro, e ainda demonstra uma tendência significativa de queda.
Em decorrência do desempenho do setor industrial, na década de 2010, a academia especializada começou a estudar a hipótese de “doença holandesa” no Brasil (BRESSER-PEREIRA, 2010a; BRESSER-PEREIRA, 2010b) e de uma potencial desindustrialização precoce (MARCONI; ROCHA, 2012; RODRIK, 2016).
No primeiro caso, convencionou-se chamar de “doença holandesa” o processo de apreciação do câmbio (valorização da moeda nacional em relação às moedas estrangeiras) junto com um aumento do saldo da balança comercial, que normalmente atuam em sentidos opostos. Esse fenômeno é consequência direta de uma sobrexploração de recursos naturais, e sua existência está diretamente associada à desindustrialização das economias (BRESSER-PEREIRA, 2010a).
Por outro lado, a desindustrialização precoce pode ser explicada por um crescimento no consumo de serviços em detrimento do consumo de bens. Apesar de se tratar de um processo natural, o evento vem sendo observado em economias com maior maturidade, isto é, economias desenvolvidas com níveis mais altos de PIB per capita (PALMA, 2005). No caso do Brasil, o referido ponto de inflexão ocorreu em um nível de PIB per capita muito inferior ao de países desenvolvidos. O Gráfico 2 apresenta a evolução da participação da indústria em comparação com a do setor de serviços nos últimos 25 anos. Como pode ser visto, a participação deste setor apresenta uma rota crescente, em oposição à da indústria.
Segundo Bresser-Pereira (2010a), os impactos da desindustrialização só não foram maiores no período mais recente por causa das políticas de crédito e do aumento do salário mínimo empregados durante os dois primeiros governos Lula (2003-2011). Apesar disso, houve uma perda significativa de capacidade exportadora e de competitividade devida, entre outros fatores, à taxa de câmbio, que é determinada pela entrada de capitais estrangeiros no país, resultado do boom de commodities. Como consequência, a demanda interna não foi capaz de gerar efeitos dinâmicos suficientes para mitigar os impactos negativos do câmbio.
Palma (2014) enumera quatro causadores de desindustrialização encontrados por especialistas na economia brasileira: 1) conforme as rendas per capita sobem, os países se especializam na produção de serviços tecnológicos; 2) com o aumento das rendas per capita, o emprego no setor de manufatura cai; 3) mudança no nível de renda per capita; e 4) “doença holandesa”. Dessa forma, a desindustrialização brasileira foi agravada por uma série de fenômenos operando simultaneamente.
Apesar de ser uma descrição acurada do processo experienciado, olhar simplesmente para o sentido da transformação não gera conhecimento o bastante sobre o que de fato vem acontecendo internamente na economia brasileira. É importante compreender quais mudanças ocorreram na composição de seu tecido industrial e também nas dimensões do emprego – como a qualidade e o tipo dos empregos gerados.[2] Nesse sentido, para este estudo, nos interessam principalmente as causantes 1 e 2 apontadas por Palma (2014).
A polarização do mercado de trabalho e a criação de empregos criativos
Desde os anos 1990, a economia criativa vem ganhando destaque no mundo acadêmico e aos olhos dos formuladores de políticas públicas. O Reino Unido foi um dos primeiros países do mundo a dar importância à economia criativa e a desenvolver metodologias para determinar as fronteiras do setor e sua importância.
Por seu papel de vanguarda, o governo britânico foi também um dos primeiros a determinar quais seriam as ocupações e atividades econômicas a compor a indústria criativa. Nesse contexto, ganhou destaque o trabalho de Bakhshi, Freeman e Higgs (2013) que introduziu a ideia de determinar os setores criativos de acordo com a sua intensidade criativa. Esses setores seriam aqueles que geram um maior número de empregos criativos e que possuem na atividade criativa o seu diferencial.[3] Nessa abordagem, os trabalhadores criativos são definidos como aqueles empregados em ocupações que envolvem criação, inovação e diferenciação, e que são realizadas com base nas capacidades intelectuais específicas do trabalhador individual (CAUZZI, 2019).
O trabalho criativo passou a ganhar ainda mais relevância quando colocado em contraste com o processo de transformação tecnológica. O mundo experienciou uma mudança de paradigma que fez com que o modelo de produção em massa começasse a dar lugar a uma economia baseada em conhecimento. Como pode ser visto no Gráfico 3, nos últimos anos, o número de empregados nos setores criativos cresceu de maneira tímida. E, apesar do crescimento, é importante salientar que o setor demonstrou volatilidade, devida sobretudo ao efeito da pandemia de covid-19, que impactou a parte cultural da indústria criativa de forma desproporcional.
Uma consequência direta desse novo modelo foi o aumento na demanda por ocupações caracterizadas pelo uso de tarefas cognitivas e manuais, acompanhado de uma redução na demanda por ocupações em que se desempenham tarefas rotineiras (AUTOR; DORN, 2013), como é o caso daquelas predominantes nos setores industriais.
Em razão do impacto dessa nova dinâmica, começou-se a falar em uma polarização dos mercados de trabalho em economias ao redor do mundo. Essa polarização ocorre quando empregos industriais, caracterizados pela execução de tarefas rotineiras, perdem espaço para empregos com exigência mais intensa de tarefas manuais ou criativas. É derivada, por um lado, da perda de força da indústria, e, por outro, do impacto das tecnologias que automatizam processos rotineiros, como é o caso dos robôs industriais, da inteligência artificial e das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) (DA SILVA, 2021). Esse fenômeno também foi encontrado na economia brasileira (MACHADO, 2017), no entanto, o crescimento do emprego criativo no país não se deu nas mesmas taxas encontradas em economias desenvolvidas.
Em economias industrializadas não polarizadas, o formato da distribuição de ocupações do mercado de trabalho tenderia a ser representado por uma linha com baixas oscilações, ou seja, existiria uma distribuição quase homogênea entre ocupações manuais, rotineiras e cognitivas. Por outro lado, a polarização do mercado de trabalho dá origem a uma curva em formato de “U”, na qual as caudas representam os trabalhadores que desempenham tarefas manuais (setor de serviços – cauda da esquerda) e cognitivas (setor criativo – cauda da direita), e a parte baixa ao meio representa os trabalhadores que desempenham tarefas rotineiras, isto é, o emprego industrial.
Como pode ser observado no Gráfico 4, o comportamento da polarização do mercado de trabalho dos Estados Unidos se diferencia do brasileiro na cauda da direita, ou seja, nas ocupações cognitivas que são empregadas pelos setores criativos. Para que a curva em formato de “U” possa ser similar à de países desenvolvidos, a taxa de expansão do emprego no setor de serviços não pode superar em grandes proporções a criação de empregos nos setores criativos. No Brasil, o que se observa é que a taxa de absorção dos serviços superou a das ocupações cognitivas, ou seja, a criação de ocupações cognitivas pelos setores criativos não foi capaz de capturar significativamente os trabalhadores que perderam seus empregos ao trabalhar nos setores industriais.
Analisando o gráfico, também podemos concluir que a perda dos empregos industriais no país foi acompanhada de uma absorção em ocupações de intensidade criativa baixa. A cauda à direita, que representa o mercado de trabalho dos Estados Unidos, tem uma inclinação e representação muito maiores do que as observadas no Brasil. Para explicar essa diferença de padrão, argumenta-se que foram criados empregos criativos nos setores em que o requerimento de tarefas cognitivas não era tão significativamente maior que o dos empregos industriais. Em outras palavras, cada ocupação demanda um porcentual de tarefas manuais, rotineiras e cognitivas, sendo as criativas aquelas que demandam maioritariamente tarefas cognitivas (DA SILVA, 2021). Nesse sentido, uma ocupação pode ser considerada criativa por exigir apenas uma porcentagem a mais de tarefas cognitivas que uma ocupação rotineira ou industrial.
Assim, para um trabalhador que foi vítima do desemprego tecnológico ou que simplesmente perdeu o emprego por enfraquecimento de sua indústria, é mais fácil reencontrá-lo em outra indústria ou atividade em que não seja necessário um salto gigante de habilidades/tarefas. Certas ocupações, mesmo sendo consideradas criativas, têm uma intensidade criativa menor que outras, pois envolvem o desempenho de atividades mais simples. Como pode ser observado na Tabela 1, no top 20 das ocupações criativas por diversos critérios, aquelas consideradas intensivas em criatividade são minoria.
No ranking 1 da Tabela 1, que traz uma foto das ocupações com maior presença nos setores criativos em 2021, podemos observar que apenas duas delas são consideradas de intensidade criativa alta, sendo a maioria dos profissionais alocada naquelas de intensidade criativa baixa. Ao observar o ranking 2, no qual são apresentadas as ocupações mais demandadas no período de 2012 a 2021, considerando a pandemia de covid-19, vemos que as de intensidade criativa alta e tecnológicas se destacaram – argumenta-se que isso ocorreu em razão da intensa digitalização das economias no período.
O ranking 3, que busca isolar o efeito da pandemia,[5] corrobora a hipótese mencionada, uma vez que mostra que as ocupações mais intensivas em criatividade não permaneceram em uma análise do período imediatamente anterior ao do impacto da covid-19. Cabe mencionar que o ranking 2 não necessariamente reflete a realidade do setor, já que muitas ocupações de baixa e média intensidade criativa foram impactadas pela pandemia, mudando assim a composição do emprego nas indústrias criativas.
Como argumentado no parágrafo anterior, as ocupações de alta intensidade criativa, como analistas de sistemas, dirigentes de serviços de TIC, urbanistas e engenheiros, arquitetos e desenhistas e projetistas técnicos, não estão presentes de maneira intensa na composição da indústria criativa brasileira, o que corrobora a afirmação de que, nos últimos anos, os empregos intensivos em criatividade foram criados em menor grau no país, diferentemente do ocorrido em economias desenvolvidas, como dos Estados Unidos.
Conclusão
A desindustrialização brasileira, diferentemente do padrão observado em países desenvolvidos, não gerou setores intensivos em tecnologia ou em criatividade. Esse fato estilizado ocorreu, em grande parte, devido a fatores como uma baixa competitividade da economia do país, derivada de uma política cambial de apreciação e de uma conjuntura mundial tecnológica e econômica não favorável. Por outro lado, também podemos apontar que os impactos sobre o mercado de trabalho brasileiro foram maiores por causa de uma deficiência na geração de habilidades para aqueles trabalhadores que perderam seus empregos, restando alocá-los em ocupações que não demandavam um salto grande de habilidades.
Apesar de uma maior demanda pela participação de profissionais desempenhando tarefas cognitivas no mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos, para aproveitar a janela de oportunidade da economia mais intensiva em conhecimento, a economia do país precisa fortalecer as capacitações de seus trabalhadores e buscar atuar antecipando certas mudanças estruturais, para que os impactos não sejam severos. Tecnologias como a inteligência artificial e a automação mostram impactos cada vez mais realistas, dessa forma, é importante prever possíveis consequências e atuar de maneira a preparar a força de trabalho brasileira para utilizar mais as tarefas cognitivas ou criativas. Finalmente, a adaptação da força de trabalho só é bem absorvida quando existe uma consonância entre políticas, como é o caso das macroeconômicas, cambiais, industriais e de capacitação.
DA SILVA, Filipe; MÖLLER, Gustavo; VALIATI, Leandro. Relações entre a desindustrialização brasileira e a indústria criativa. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.